segunda-feira, 7 de junho de 2010

Percepções...

... E assim começa. Num nível normal, ou tão normal quanto o possível no que tange às vivências, e o cotidiano, dentro de certos parâmetros. Arquétipos convencionais sociais, que com o passar das horas, dias, anos, foram adquirindo tons de cinza, uma conotação meio morta, seguida por feitos automáticos, e desprovidos de qualquer emoção, abrangendo até mesmo as relações pessoais mais íntimas. Mesmo o prazer passou a ser premeditado, repetitivo, sem graça.


Naquele dia, nada havia fugido aos padrões. Nada foi desperto do transe consciente auto-imposto, com base no amplamente difundido como provedor de felicidade, e todas as suas alegorias hipnotizantes que bombardeiam a grande massa, com alusões a circunstâncias onde todo o adquirível possivelmente possa exercer efeitos comparáveis ao das drogas, proporcionando alguns poucos momentos de euforia, êxtase, que tão rápido quanto adquirido se esvai, abrindo amplos caminhos para o consumismo compulsivo obsessivo, quase compreensível ou aceitável.
E lá estava ela. Levando sua vida, consciente dessas situações da qual se tornara escrava, e que tanto despreza.
Era noite. Agradável noite chuvosa. E ela estava deita em sua cama assistindo a algum programa qualquer, desses burros e engraçados, feitos para gente que tem preguiça até de ser crítico, mas que entretêm e faz rir. Ela estava impassível, inquieta, e olhava seu televisor de tubo, com quem olha uma vitrine vazia. Não entendia, mas não havia problema, estava imersa em seus pensamentos sem identificar nem ao menos onde estava. Refletia se sua vida poderia ser diferente se em algum momento decidisse ir contra a maré de opiniões, ir contra alguns princípios adquiridos, não sabia ela se por contra própria, ou por opressão.
Não era excepcional, não era portadora de nenhuma beleza extraordinária, não conseguia decidir-se que caminho tomar dentre todas as coisas que gostava de fazer, e foi anulando-se, tornando-se meio incompleta, mas visto de um outro prisma, no entanto, meio completa. Sabia um pouco de cada coisa que lhe agradava, nunca tudo.
Naquela noite, aguardava o momento para sair com seus amigos, ora conquistados aleatoriamente ou não, geralmente unidos por alguns pontos em comum, ora amigos do trabalho com quem passava a maior parte do tempo, e não havia como ser diferente, pois após certo tempo, sua vida pessoal passou a mesclar-se com a profissional, exceto por algumas poucas distinções éticas óbvias, as quais fazia questão de manter.
Quando decidiu levantar-se, deu-se por conta do horário. Já havia passado, e muito, da hora combinada, mas não ficou em polvorosa. Caminhou com calma até o banheiro, onde banhou seu corpo quente com a delicadeza e o esmero de um ourives. Gostava daquele momento único. Encontrava-se sozinha, massageada pela água que caia com força em seus cabelos e ombros. Gostava de sentir sua pele escorregadia sob o efeitos de óleos e sabões. Era o momento em que notava a si própria com mais veemência, vontade, e gosto.
Terminado aquele ritual demorado e extremamente agradável a ela, seguiu rumo ao quarto, onde se adornou, se vestiu, se perfumou. Estava pronta, e assim como em muitas outras vezes, saiu solitária. Na realidade ela não distinguia bem qual era a melhor parte de fazer tudo aquilo sempre para obter um pouco de diversão, se o que realmente gostava era da expectativa e do fato de estar sozinha, seguindo independente rumo ao encontro planejado, ou se gostava mais dos eventos enfim.
Já havia se livrado, há muito tempo, de algumas pretensões, de algumas objetivações que esse tipo de diversão trás subentendido. Decepcionara-se muito com homens de todas as cores, tipos, tamanhos, e línguas. Lógico, mantinha suas “janelas” abertas para observação, mas raramente “abria alguma porta” que permeasse a entrada desse tipo de contato.
Livrara-se com orgulho, da idéia de que para uma mulher ser completa precisa de um par. Ela sentia-se inteira, nada propensa a “paixonites”, ou amores doentios. Em tudo o que fazia nesse aspecto, era motivada por escolha, vontade. Instinto? Talvez. Mas com uma racionalidade aflorada, beirando a insensibilidade. Não agüentava a hipótese de tornar-se dona-de-casa, apesar de que em seu âmago, carregava consigo a esperança de encontrar quem lhe fizesse mais que bem. Mas era um sentimento tão remoto que pouco, ou nada se fiava a ele.
E assim ela seguiu, obstinada, rumo ao local de encontro combinado. Desceu as escadas do prédio onde se encontrava e se foi. Já na portaria do edifício, notara que a chuva ia cessando, dando espaço à lua, que por sua vez teimava em brindar a presença dela por entre as nuvens, emitindo seus poucos raios de luz sobre aqueles cabelos escuros, e aquela pele clara que remetia ao reflexo da própria lua.
Não se encontrariam longe dali. Ela poderia perfeitamente seguir a pé, contemplando a lua que surgia. E assim foi.

Música suave, e comida servida de forma simples, mas que alimentara de forma satisfatória sua necessidade.
Sentada com seus amigos, apreciou a comida e o ambiente. Adorava aquilo. Era tomada por um misto de sabores e desgostos, ambos passiveis de discussão à mesa. Divertia-se achincalhando o que lhe fugia aos padrões de idéias, e à mesa, podia tranquilamente disfarçar seus comentários mordazes entre sorrisos e dentadas. Comentava impressões sobre as pessoas em volta, e ria a livres pulmões do senhor de caraça gorducha e ruborizada que cantava a garçonete como que implorando misericórdia.
Evidentemente, nessas condições, era levada a esquecer, ou a tornar para si em instantes como estes, mais leves as condições das quais tanto refletia, dentro de todos aqueles tons cinzas infinitos que bem conhecia.
Observava atenta, com uma calma analítica e dissecadora, o consumo de álcool e tabaco, enquanto partilhava dos mesmos vícios. Excitava-se ao avaliar até que ponto as pessoas libertavam-se sob efeito de certas drogas.
As faces aos poucos foram tornando-se mais receptivas, coradas, e felizes, e entre uma conversa e outra, vertia de seu cálice, um pouco mais de vinho.
Era cuidadosa, já passara por situações das quais se arrependera profundamente em relação ao excesso de bebida, onde num nível acima do ébrio ocasional deparou-se com a bebedeira na sua pior forma.
Certa vez passou dos limites de tal maneira que não conseguia lembrar-se de nada que acontecera na noite anterior. Havia acordado com um hematoma na cabeça, e outros espalhados por coxas e braços. Estava deitada em sua cama, não lembrava-se de como chegara ali, e como se não bastasse, trajava uma roupa que não era sua, unicamente uma camiseta preta masculina, mas estava sozinha. Nunca soube bem o que aconteceu naquela noite fatídica de outrora, regada à Wisky e Vodka baratos.
Agora, porém, tornou-se cautelosa, e desenvolveu uma resistência sobre-humana ao álcool, ainda sim mantinha certo receio daquela experiência pretérita, também da possibilidade de que essa viesse a reincidir nos tempos atuais, e quando percebia-se ébria, parava de beber.
Essa sua nova metodologia de proceder em suas noites de diversão, já lhe rendera outros tipos de experiências, participações em casos graves, onde cuidava de seus amigos super embriagados, geralmente os mesmo. Ela achava que eles saiam não para vê-la, ou se divertirem, lhe parecia que para eles, o ponto auge da noite era perder a consciência. Em partes ela entendia.
Um de seus amigos, um homenzarrão moreno, forte e alto, com traços bugres a quem ela chamava carinhosamente de Caboclo, havia perdido há pouco tempo um de seus melhores amigos, que se suicidara por uma desilusão amorosa, e em meio ao suporte que prestava a ele, numa das noites posteriores ao ocorrido, mais que propícia aos excessos, Caboclo declarou-se a ela, falando-lhe há quanto tempo sentia-se apaixonado. Ela rio um sorriso meigo e amigo, e acariciando os curtos cabelos bastos, pretos e lisos de Caboclo, explicara a ele que apesar de muito bonito, o amigo não exercia sobre ela qualquer tipo de atração que não fosse referente à sua amizade. Ele rio desapontado entre as lágrimas que lhe escorriam face abaixo, sofrendo pela recente perda, e olhou ela nos olhos castanhos profundos, disse-lhe então, entre arcares de vômito e soluços de choro, que não estava pedindo a ela que o amasse, entendia que seu sentimento era unilateral, mas também era independente e sincero, ele dissera-lhe também que se bastava tendo-a como amiga, estando perto dela, mas estava sufocando, e sentia uma necessidade urgente de contar a ela, depois de tanto suprimir em seus disfarces, o que realmente sentia. Em seguida, Caboclo vomitou nas coxas desnudas dela, que nauseada com aquele cheiro fétido, suas pernas lavadas pelo vômito do amigo, e notando o quanto aquela situação era constrangedora para ele, também para ela, não conteve-se, e caiu em gargalhadas, arquejando nauseada em meio ao acesso de risos, o fazendo rir também, e naquele momento Caboclo à amou mais.

CONTINUA...

Nenhum comentário:

Postar um comentário